Reforma tributária mantém delegação de detalhes à regulamentação

O Plenário do Senado Federal aprovou na noite desta quarta-feira (8/11) a reforma tributária. A proposta de emenda à Constituição, que agora volta à Câmara dos Deputados, tem como ponto principal a unificação de IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS em um Imposto de Valor Agregado (IVA) dual. E, segundo tributaristas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico, o verdadeiro impacto da medida continua sujeito à sua regulamentação por meio de normas infraconstitucionais futuras.

Eduardo Maciel, especialista em Direito Tributário e sócio do escritório MFBD Advogados, explica que a reforma traz regras gerais de incidência tributária, como a definição do fato gerador e o ente competente para a tributação. Mas “a definição de formato da arrecadação, estipulação das alíquotas específicas, procedimento para evolução do cashback, entre outras instrumentalidades, ficará a cargo de legislação infraconstitucional — que não exigirá o quórum privilegiado que a PEC exigiu, bastando a votação da maioria”.

Para Ana Cláudia Utumi, sócia do escritório Utumi Advogados, a reforma é positiva, “apesar de não ser a que mais simplifica o sistema tributário”. Isso porque, em vez de um único IVA, serão três tributos — Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e Imposto Seletivo. Além disso, há exceções, regras específicas e possibilidade de cada estado e cada município estabelecer suas alíquotas até um máximo a ser estabelecido.

Na interpretação de João Claudio Leal, sócio coordenador da área de Direito Tributário do SGMP Advogados, “a tarefa do legislador infraconstitucional foi ampliada em comparação àquela definida pelo texto aprovado pela Câmara”. Isso porque o Senado introduziu no texto algumas modificações: “Foram definidas outras hipóteses de tributação diferenciada, o mecanismo de desoneração das operações com produtos da cesta básica ficou mais complexo e será necessário definir quais profissionais liberais terão direito à redução de 30% da CBS e do IBS”.

À época da aprovação do projeto na Câmara, em julho deste ano, boa parcela dos tributaristas defendeu que a reforma representa uma simplificação positiva. Fabio Florentino, sócio do BMA Advogados, foi um deles. Para o advogado, a ideia se manteve, mas haverá ainda mais necessidade de regulamentação, já que o Senado trouxe “um rol ainda maior de exceções”.

De acordo com ele, essa necessidade “é como tem de ser, pois o processo legislativo é assim”: a Constituição determina princípios, a lei dá as diretrizes para a sua aplicação e “o regulamento dessas normas superiores é quem determina os detalhes”.

O advogado e professor Fábio Pallaretti Calcini endossa essa visão. Sem constatar alterações significativas no Senado quanto à necessidade de regulamentação, ele explica que isso é natural. “A Constituição não cria o tributo. Ela outorga a competência e dá os limites pra atuação do legislador”, indica ele. “Sempre vamos depender de lei.”

Calcini ressalta que as leis complementares “traçarão os detalhes”, como: o que será tributado, alíquotas, forma de crédito, não cumulatividade, questões de exportações etc. Somente a partir disso será possível “ter uma visão mais clara e concreta da reforma tributária”.

É o que também diz Eduardo Diamantino, sócio do Diamantino Advogados Associados. Ele ressalta que o texto foi pouco alterado no Senado e que os mecanismos serão definidos pela legislação infraconstitucional. “Tem de ser assim. Por uma questão de técnica legislativa, a norma constitucional só cria o arcabouço dos tributos. Seu funcionamento deve ficar para a lei complementar e ordinária.”

O raciocínio é confirmado por Luiz Gustavo Bichara: “A Constituição deve definir competências e limitações ao poder de tributar, mas não deve trazer questões mais específicas, como valor de alíquota ou obrigações acessórias, por exemplo”.

Ele considera que o Senado “andou bem em delimitar alguns aspectos da reforma tributária”. Um dos avanços diz respeito à desoneração na aquisição de bens de capital. O texto aprovado pela Câmara falava em “redução de impacto tributário”, o que, segundo Bichara, “poderia ser qualquer coisa”. Já o novo texto “é mais claro em falar sobre diferimento, isenção ou crédito integral e imediato”. A desoneração ainda será regulamentada por lei complementar, “mas agora há parâmetros mais objetivos estabelecidos pela PEC”.

De acordo com Sérgio Grama Lima, tributarista da banca Leite, Tosto e Barros Advogados — que também não vê alteração no cenário —, há a expectativa de que as normas regulamentadoras da reforma sejam editadas nos dois próximos anos, já que “a nova sistemática passará a valer a partir de 2026”.

Ana Cláudia Utumi diz que “será importante acompanhar de perto as regras que serão estabelecidas por meio de leis complementares” e “igualmente importante ver na prática como irá funcionar o Comitê Gestor, em especial ver se as regras por ele emanadas não irão ultrapassar do poder de regulamentar, já que o poder de legislar pertence ao Congresso”.

Ressalvas

Pedro Lameirão, sócio do BBL Advogados, considera que o cenário continua o mesmo da aprovação na Câmara, mas, para ele, as novas exceções têm como consequência indireta o aumento da complexidade: “Quanto mais recortado o sistema, mais difícil de enquadrar de forma correta cada atividade econômica na lei. Até mesmo compatibilizar a interação entre esses subsistemas se torna mais complicado”.

Maurício Barros, sócio da área tributária do Demarest, destaca o mesmo ponto: “A lista de regimes diferenciados e específicos foi ampliada, o que também pode gerar um pouco mais de complexidade com relação ao texto aprovado na Câmara”.

Ele acredita que as mudanças promovidas pelo Senado não mudaram a essência da reforma e mantiveram “uma boa dose de simplificação, considerando a maior clareza quanto às hipóteses de incidência e de apropriação de créditos, sobretudo se comparados com os regimes atuais de ICMS, PIS e Cofins”. O advogado lembra que o ICMS é regulado por cada estado e o ISS, por mais de 5,5 mil municípios. Ou seja, “a simplificação também já viria com a potencial forte redução de produção normativa”.

Outro ponto positivo, segundo Barros, é que o texto aprovado no Senado “deu maior ênfase à necessidade de simplificação das obrigações acessórias”. Mas há a previsão de que uma lei complementar regule os critérios para essas obrigações. “Embora haja um claro comando ao legislador para simplificar, a simplificação concreta ainda dependerá do que vier na lei complementar.”

Também sócio da área tributária do Demarest, Thiago Amaral aponta outro obstáculo à simplificação: a manutenção da possibilidade de que os estados com contribuições sobre produtos primários e semielaborados (criadas como condições para fruição de benefícios do ICMS) implementem novas contribuições não vinculadas ao ICMS até 2043.

“Cria-se uma nova espécie tributária com contornos particulares, e que não se coadunam com algumas lógicas defendidas na reforma, como a tributação na origem e não no destino, e o potencial aumento de carga”, assinala Amaral.

Maria Carolina Sampaio, head da área tributária e sócia do GVM Advogados, entende que a reforma de fato representa uma simplificação para o cálculo e o recolhimento de tributos, mas que “não será tão acentuada quanto se prega”. Os motivos para isso são “as inúmeras exceções previstas no texto” e “as incontáveis questões deixadas para regulamentação posterior”. Esse quadro se agravou no Senado, “o que poderá complicar um pouco mais o sistema”.

Lucas Lazzarini, sócio da área tributária do Marzagão e Balaró Advogados, também aponta que “o cenário ainda é muito incerto, tendo em vista as inúmeras remissões que o texto faz à necessidade de regulamentação das novas regras pela legislação infraconstitucional”. Segundo ele, é impossível medir os impactos econômicos da reforma “sem conhecer o teor das leis que ainda virão para tratar do tema”.

O advogado enxerga na reforma a ideia de simplificar o sistema e reduzir a burocracia na prestação de informações ao Fisco. Mas, para ele, isso só acontecerá após o fim da fase de transição entre o sistema atual e o substitutivo.

“Até lá, em 2032, conviveremos com os dois sistemas, o que gerará efeito exatamente contrário ao pretendido, com aumento significativo das informações a serem prestadas pelos contribuintes às autoridades fiscais”, diz Lazzarini.

Já Eduardo Diamantino não concorda que a reforma tributária representa uma simplificação: “Nos próximos dez anos vamos conviver com dois sistemas de tributação, o novo e o velho, e isso vai aumentar os custos fiscais e contábeis”.

Gustavo Brigagão, presidente nacional do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa), também discorda da ideia de simplificação. Segundo ele, a não cumulatividade continua sendo um problema no sistema da reforma, que deixa dúvidas sobre o conceito. “Há uma delegação à lei complementar. O conceito de não cumulatividade deveria estar todo na Constituição.”

“O concidicionamento do crédito ao pagamento pelo elo anterior da cadeia é um absurdo. Não existe em lugar nenhum do mundo. Imagine uma empresa de departamentos fazendo uma auditoria em 600 fornecedores para saber se o tributo foi efetivamente pago ou não”, prossegue ele.

Brigagão admite “uma certa melhoria no Senado dos equívocos gigantescos que foram cometidos na Câmara”. Como exemplo, ele cita o “tratamento mais adequado” dado às sociedades profissionais e profissões regulamentadas (como advocacia), com redução de 30% na alíquota.

Mesmo assim, o tributarista entende que a redução deveria ser de, no mínimo, 60%. Segundo o advogado, os serviços em questão “são absolutamente essenciais e atendem a todas as camadas da sociedade brasileira”. Ele lembra que o artigo 133 da Constituição define a advocacia como “indispensável à administração da Justiça”.

Fonte: Conjur

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