Além da Maconha: decisão do STF sobre descriminalização reflete uma nova era para os Direitos Humanos

Por Dinovan Dumas*

A recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que descriminaliza o porte de maconha para uso pessoal tem gerado um turbilhão de opiniões, com um consequente e acalorado debate que vem sendo alimentado por um profundo desconhecimento sobre a essência do entendimento que foi firmado. É importante, então, que sejam feitos alguns esclarecimentos, para que a discussão possa ser realizada com um pouco mais de profundidade (e menos achismos).

Primeiro, é preciso dizer que a decisão do STF não legaliza o consumo de maconha no Brasil. Quem afirma isso não está interessado em estabelecer um debate sério sobre o assunto. A decisão da Suprema Corte institui uma regra segundo a qual a pessoa que for flagrada com até 40 gramas de maconha será presumivelmente considerada como usuária, sem que isso faça com que o uso de maconha deixe de ser visto pela lei e pelo próprio Poder Judiciário como um ato ilícito, isto é, contrário à lei, embora deixe de ser considerado um crime.

É provável que o usuário de maconha branco, com elevado nível de escolaridade e alto poder aquisitivo, não sinta os efeitos que derivam dessa decisão. Ele continuará sendo considerado usuário e, se for levado para a delegacia, receberá uma advertência singela e sairá de lá com pressa para não perder a sessão das 4:20. Quem compreenderá a verdadeira [e esperada!] dimensão dessa mudança de entendimento serão os jovens pretos e pobres que moram no extremo leste de São Paulo. Especialmente se o Governo Federal aproveitar o embalo e conduzir com mãos de ferro o avanço que a luta contra o racismo estrutural e a promoção dos direitos humanos efetivamente precisam.

O Núcleo de Estudos Raciais do Insper fez um levantamento interessante, recentemente divulgado pela Folha de S. Paulo. Eles reuniram boletins de ocorrência de 2010 a 2020 e constataram, entre outras coisas, a influência do tipo de droga e do grau de instrução da pessoa detida na conduta adotada pela polícia. Constataram também que 31 mil pessoas pardas e pretas foram enquadradas como traficantes em situações similares àquelas em que brancos foram tratados como usuários. Um número expressivo e suficiente para lotar 40 dos 43 Centros de Detenção Provisória (CDP) masculinos do estado de São Paulo. Em resumo, o estudo assinado por Daniel Duque, Alisson Santos e Michel França aponta que a possibilidade de ser qualificado como traficante é 1,5% maior se o suspeito ou a suspeita for preto ou pardo em relação ao que ocorre se ele for branco (sempre considerando a mesma quantidade de droga, a mesma substância, mesma idade etc.).

Não é preciso muito esforço intelectual, então, para concluir que esses dados denunciam de forma absurdamente clara a maneira como a população preta e pobre é vista pelas autoridades públicas. Ou melhor, pela polícia. É de fácil percepção que a aplicação desigual da lei no Brasil tem impactado desproporcionalmente a população negra, de modo que a decisão do STF traz um certo alívio para quem tem algum tipo de preocupação com este tipo de tema no Brasil, sinalizando uma mudança necessária na percepção sobre equidade racial. É um chamado à reflexão sobre como nossas políticas públicas e práticas sociais perpetuam desigualdades que não podem mais ter espaço na sociedade.

Outro ponto de destaque está na oportunidade que o STF ofereceu ao Governo. Parafraseando um ex-ministro qualquer, é hora de o Poder Executivo “passar a boiada” e estabelecer um novo direcionamento para a questão, fazendo prevalecer as políticas focadas em saúde e direitos humanos, haja vista que elas têm o potencial de reduzir o racismo intrínseco à sociedade, a estigmatização dos usuários e a facilitação do seu acesso a empregos, educação e assistência social. Vale registrar que este tipo de postura caminha em linha com as recomendações de organismos internacionais como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS), que defendem que o tratamento da dependência de drogas deve ser feito de maneira não discriminatória e focada na saúde.

Essa reorientação é corroborada por evidências internacionais que demonstram a eficácia da redução de danos em comparação com a criminalização. Países como Portugal e Canadá oferecem modelos bem-sucedidos que o Brasil pode aspirar, onde a integração de serviços de saúde mental e tratamentos de dependência mostrou resultados positivos na recuperação de usuários e na diminuição de danos sociais e econômicos.

Mas não é só. O impacto econômico também é significativo. Nos Estados Unidos, por exemplo, os estados que decidiram legalizar a maconha têm visto um aumento significativo na receita fiscal. Em 2023, a receita total de impostos coletados por todos os estados norte-americanos com a maconha ultrapassou US$ 4,18 bilhões. O estado da Califórnia, especificamente, arrecadou US$ 1,1 bilhão em impostos sobre vendas de maconha.

Aumentou também o número de empregos. Também nos Estados Unidos, a indústria legal da maconha tem gerado um número considerável de empregos. A chamada indústria canábica devidamente licenciada adicionou mais de 23 mil novos empregos, empregando agora mais de 440 mil trabalhadores em tempo integral, somente em 2023. Entre 2017 e 2022, a indústria experimentou um crescimento anual de dois dígitos.

É impossível não considerar, então, que descriminalizar o porte de maconha para uso pessoal está relacionado com uma ideia inteligente de reformar a nossa visão sobre a sociedade como um todo. É um reconhecimento de que as velhas abordagens punitivas falharam não apenas em controlar o uso de drogas, mas também em proteger os mais vulneráveis. Com essa decisão, o Brasil se posiciona de forma alinhada com um movimento global por justiça e humanidade, desafiando a sociedade a reimaginar nosso sistema de justiça. E o meu desejo sincero é que esta seja a primeira de muitas vitórias para a turma dos direitos humanos.

*Este artigo foi originalmente publicado no informativo ORBIS NEWS.

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